Sexta Turma rechaça condenação baseada em reconhecimento que não seguiu procedimento legal

 

Ao conceder habeas corpus para absolver um homem acusado de roubo, cuja condenação não teve outra prova senão a declaração de vítimas que dizem tê-lo identificado em uma foto apresentada pela polícia, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu diretrizes para que o reconhecimento de pessoas possa ser considerado válido.

Segundo o relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz, a não observância das formalidades legais para o reconhecimento – garantias mínimas para o suspeito da prática de um crime – leva à nulidade do ato.

Em seu voto, o ministro afirmou que é urgente a adoção de uma nova compreensão dos tribunais sobre o ato de reconhecimento de pessoas. Para ele, não é mais admissível a jurisprudência que considera as normas legais sobre o assunto – previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal – apenas uma “recomendação do legislador”, podendo ser flexibilizadas, porque isso “acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças”.

Risco​​​​ de falhas

O voto do relator foi seguido por todos os membros da Sexta Turma. O ministro Nefi Cordeiro apenas ressalvou que, em seu entendimento, só as violações graves ao procedimento do artigo 266 deveriam anular a prova.

Ficou estabelecido no julgamento que, em vista dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na norma legal invalida o ato e impede que ele seja usado para fundamentar eventual condenação, mesmo que o reconhecimento seja confirmado em juízo.

Segundo os ministros, o magistrado pode realizar o ato de reconhecimento formal, desde que observe o procedimento previsto em lei, e também pode se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação com o ato viciado de reconhecimento.

Por fim – decidiu a turma –, o reconhecimento do suspeito por fotografia, além de dever seguir o mesmo procedimento do artigo 226, tem de ser visto apenas como etapa antecedente do reconhecimento presencial; portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

Injustiç​​as

Acusado de participação em assalto na cidade de Tubarão (SC), o suspeito foi condenado em primeira e segunda instâncias a cinco anos e quatro meses de prisão, apenas com base em reconhecimento fotográfico feito durante o inquérito. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) entendeu que seria perfeitamente possível o reconhecimento por foto no inquérito, mesmo quando o suspeito não foi preso em flagrante, como no caso.

O habeas corpus foi impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina. A ONG Innocence Project Brasil, que atuou no caso como amicus curiae, chamou a atenção para as injustiças que podem decorrer do reconhecimento de suspeitos sem a observância das regras legais.

Segundo a Defensoria Pública, não houve nenhuma outra prova que corroborasse a acusação. Além disso, as vítimas haviam relatado que o assaltante teria cerca de 1,70m de altura, 25cm a menos do que o suspeito condenado. Três das vítimas afirmaram que não seria possível reconhecer os autores do crime, que estavam com o rosto parcialmente coberto.

O ministro Rogerio Schietti observou que, diferentemente do que é exigido pelo CPP, as pessoas que participaram do reconhecimento não tiveram de fazer a prévia descrição do criminoso, nem lhes foram exibidas outras fotos de possíveis suspeitos. Em vez disso, a polícia escolheu a foto de alguém que já cometeu outros crimes, mas que nada indicava ter ligação com o roubo investigado.

“Chega a ser temerário o procedimento policial adotado neste caso, ao escolher, sem nenhuma explicação ou indício anterior, quem se desejava que fosse identificado pelas vítimas”, afirmou o relator.

Erros judi​​ciários

Segundo o ministro, o reconhecimento equivocado de suspeitos tem sido uma das principais causas de erro judiciário, levando inocentes à prisão. Tal situação levou à criação, nos Estados Unidos, em 1992, da Innocence Project, entidade fundada por advogados especialistas em pedir indenizações ao Estado em decorrência da condenação de inocentes.

“Segundo pesquisa feita por essa ONG, aproximadamente 75% das condenações de inocentes se devem a erros cometidos pelas vítimas e por testemunhas ao identificar os suspeitos no ato do reconhecimento. Em 38% dos casos em que houve esse erro, várias testemunhas oculares identificaram incorretamente o mesmo suspeito inocente”, afirmou.

Para o relator, o reconhecimento por meio fotográfico é ainda mais problemático quando realizado por simples exibição de fotos do suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, previamente selecionadas pela polícia.

Prova com​prometida

“Mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no CPP para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato”, destacou.

No entender do ministro, deve ser exigido da polícia que realize sua função investigativa comprometida com “o absoluto respeito às formalidades desse meio de prova”.

“Este Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, ao conferir nova e adequada interpretação do artigo 226 do CPP, sinaliza, para toda a magistratura e todos os órgãos de segurança nacional, que soluções similares à que serviu de motivo para esta impetração não devem, futuramente, ser reproduzidas em julgados penais”, declarou.

Leia o voto do relator.

Fonte: STJ – 28/10/2020

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 598886

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