Poema do coração… António Gedeão

  Poema do coração…. Eu queria que o Amor estivesse realmente no coração,e também a Bondade,e a Sinceridade,e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no coração.Então poderia dizer-vos:“Meus amados irmãos,falo-vos do coração”,ou então:“com o coração nas mãos”.Mas o meu coração é como o dos compêndios.Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral)e os … Ler mais

Poema da auto-estrada … António Gedeão

  Poema da auto-estrada …  Voando vai para a praiaLeonor na estrada pretaVai na brasa de lambreta.Leva calções de pirata,Vermelho de alizarina,modelando a coxa finade impaciente nervura.Como guache lustroso,amarelo de indantrenoblusinha de terilenodesfraldada na cintura.Fuge, fuge, Leonoreta.Vai na brasa, de lambreta.Agarrada ao companheirona volúpia da escapadapincha no banco traseiroem cada volta da estrada.Grita de medo … Ler mais

Amador sem coisa amada … António Gedeão

  Amador sem coisa amada …  Resolvi andar na ruacom os olhos postos no chão.Quem me quiser que me chameou que me toque com a mão.Quando a angústia embaciarde tédio os olhos vidrados,olharei para os prédios altos,para as telhas dos telhados.Amador sem coisa amada,aprendiz colegial.Sou amador da existência,não chego a profissional.

Impressão digital … António Gedeão

  Impressão digital …  Os meus olhos são uns olhos.E é com esses olhos unsque eu vejo no mundo escolhosonde outros, com outros olhos,não vêem escolhos nenhuns.Quem diz escolhos diz flores.De tudo o mesmo se diz.Onde uns vêem luto e dores,uns outros descobrem coresdo mais formoso matiz.Nas ruas ou nas estradasonde passa tanta gente,uns vêem … Ler mais

Lágrima de preta … António Gedeão

  Lágrima de preta …  Encontrei uma pretaque estava a chorar,pedi-lhe uma lágrimapara a analisar.Recolhi a lágrimacom todo o cuidadonum tubo de ensaiobem esterilizado.Olhei-a de um lado,do outro e de frente:tinha um ar de gotamuito transparente.Mandei vir os ácidos,as bases e os sais,as drogas usadasem casos que tais.Ensaiei a frio,experimentei ao lume,de todas as vezesdeu-me … Ler mais

Dez réis de esperança … António Gedeão

  Dez réis de esperança …  Se não fosse esta certezaque nem sei de onde me vem,não comia, nem bebia,nem falava com ninguém.Acocorava-me a um canto,no mais escuro que houvesse,punha os joelhos á bocae viesse o que viesse.Não fossem os olhos grandesdo ingénuo adolescente,a chuva das penas brancasa cair impertinente,aquele incógnito rosto,pintado em tons de … Ler mais

Poema do alegre desespero … António Gedeão

  Poema do alegre desespero …  Compreende-se que lá para o ano três mil e talninguém se lembre de certo Fernão barbudoque plantava couves em Oliveira do Hospital,ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Doresque tirou um retrato toda vestida de veludosentada num canapé junto de um vaso com flores.Compreende-se.E até mesmo que já ninguém … Ler mais

Pedra Filosofal… António Gedeão

  Pedra Filosofal…  Eles não sabem que o sonhoé uma constante da vidatão concreta e definidacomo outra coisa qualquer,como esta pedra cinzentaem que me sento e descanso,como este ribeiro mansoem serenos sobressaltos,como estes pinheiros altosque em verde e oiro se agitam,como estas aves que gritamem bebedeiras de azul.Eles não sabem que o sonhoé vinho, é … Ler mais

Elegia 1938 … Carlos Drummond de Andrade

  Elegia 1938 … Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.Praticas laboriosamente os gestos universais,sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção.À noite, se … Ler mais

Passagem do Ano… Carlos Drummond de Andrade

  Passagem do Ano…  O último dia do anonão é o último dia do tempo.Outros dias virãoe novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.Beijarás bocas, rasgarás papéis,farás viagens e tantas celebraçõesde aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,os irreparáveis uivosdo … Ler mais

Amar … Carlos Drummond de Andrade

  Amar…  Que pode uma criatura senão,entre criaturas, amar?amar e esquecer,amar e malamar,amar, desamar, amar?sempre, e até de olhos vidrados, amar?Que pode, pergunto, o ser amoroso,sozinho, em rotação universal, senãorodar também, e amar?amar o que o mar traz à praia,o que êle sepulta, e o que, na brisa marinha,é sal, ou precisão de amor, ou … Ler mais

Ausência… Carlos Drummond de Andrade

  Ausência… Por muito tempo achei que a ausência é falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje não a lastimo.Não há falta na ausência.A ausência é um estar em mim.E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,que rio e danço e invento exclamações alegres,porque a ausência, essa ausência assimilada,ninguém a rouba mais de mim.

Os ombros suportam o mundo… Carlos Drummond de Andrade

  Os ombros suportam o mundo…  Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.Tempo de absoluta depuração.Tempo em que não se diz mais: meu amor.Porque o amor resultou inútil.E os olhos não choram.E as mãos tecem apenas o rude trabalho.E o coração está seco.Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.Ficaste sozinho, … Ler mais

As sem razões do amor… Carlos Drummond de Andrade

  As sem razões do amor…  Eu te amo porque te amo.Não precisas ser amante,e nem sempre sabes sê-lo.Eu te amo porque te amo.Amor é estado de graçae com amor não se paga.Amor é dado de graça,é semeado no vento,na cachoeira, no eclipse.Amor foge a dicionáriose a regulamentos vários.Eu te amo porque não amobastante ou … Ler mais

Destruição… Carlos Drummond de Andrade

  Destruição…  Os amantes se amam cruelmentee com se amarem tanto não se vêem.Um se beija no outro, refletido.Dois amantes que são? Dois inimigos.Amantes são meninos estragadospelo mimo de amar: e não percebemquanto se pulverizam no enlaçar-se,e como o que era mundo volve a nada.Nada. Ninguém. Amor, puro fantasmaque os passeia de leve, assim a … Ler mais

Amar … Carlos Drummond de Andrade

  Amar  Que pode uma criatura senão,entre criaturas, amar?amar e esquecer,amar e malamar,amar, desamar, amar?sempre, e até de olhos vidrados, amar?Que pode, pergunto, o ser amoroso,sozinho, em rotação universal, senãorodar também, e amar?amar o que o mar traz à praia,o que êle sepulta, e o que, na brisa marinha,é sal, ou precisão de amor, ou … Ler mais